22 de março de 2011

A perfeita alegria

Frei Orlando Bernardi, OFM

O apólogo da Perfeita Alegria de Francisco é, sem dúvida, o escrito que mais e melhor consegue traduzir as coordenadas fundamentais de sua espiritualidade e, por conseguinte, de toda a espiritualidade franciscana. Sua forma literária é extremamente bem cuidada, deixando transparecer muito da poesia e do lirismo que, de vez em quando, acometiam o santo. Outrossim, respira ainda o mundo medieval com todo o seu encantamento e, ao mesmo tempo, o ar misterioso dos esquemas simples, onde os valores e desvalores ocupam um papel de personagens que buscam o seu lugar no mundo, na Igreja e em cada história humana. Em todo o caso, para entender esse texto tão simples, à primeira vista, faz-se necessário colocar-se no horizonte da medievalidade e tentar aproximá-lo, o mais possível, dos grande momentos e resoluções assumidos pelo Poverello.

Eis o texto:

O mesmo (Frei Leonardo) contou que um dia o bem-aventurado Francisco, perto de Santa Maria dos Anjos, chamou a Frei Leão e lhe disse: “Frei Leão, escreve”. Este respondeu: “Eis-me pronto”. “Escreve – disse – o que é a verdadeira alegria”. Vem um mensageiro e diz que todos os mestres de Paris entraram na Ordem; escreve: não está aí a verdadeira alegria. E igualmente que entraram na Ordem todos os prelados de Além-Alpes, arcebispos e bispos, o próprio rei da França e o da Inglaterra; escreve: não está aí a verdadeira alegria. E se receberes a notícia de que todos os meus irmãos foram pregar aos infiéis e converteram a todos para a fé, ou que eu recebi tanta graça de Deus que curo os enfermos e faço milagres: digo-te que em tudo isso não está a verdadeira alegria. Mas, o que é a verdadeira alegria? Eis que volto de Perusa no meio da noite, chego aqui num inverno de muita lama e tanto frio que na extremidade da túnica se formaram caramelos de gelo que me batem continuamente nas pernas fazendo sangrar as feridas. E todo envolvido na lama, no frio e no gelo, chego à porta, e depois de bater e chamar por muito tempo, vem um irmão e pergunta: “Quem é?” E eu respondo: “Frei Francisco”. E ele diz: “Vai-te embora; não é hora própria de chegar, não entrarás”. E ao insistir, ele responde: “Vai-te daqui, és um ignorante e idiota; agora não poderás entrar; somos tantos e tais que não precisamos de ti”. E fico sempre diante da porta e digo: “Por amor de Deus, acolhei-me por esta noite”. E ele responde: “Não o farei. Vai aos crucíferos e pede lá”. Pois bem, se eu tiver tido paciência e permanecer imperturbável, digo-te que aí está a verdadeira alegria, a verdadeira virtude e salvação da alma”.

Na verdade, ao longo da história esse texto de prestou para interpretações variadas, desde as mais simples até as elaborações mais esmeradas e complexas. As primeiras vêem nesse texto uma admoestação aos seguidores do santo, afirmando que é preciso sofrer desenganos e decepções, até dos próprios irmãos, para alcançar a verdadeira paz interior e a alegria no Senhor. As outras percebem no texto uma proposta essencial segundo a qual o santo, de modo algum, se acomoda aos princípios e modelos de viver e atuar assumidos pela Igreja e pelo mundo de então. De acordo com essa interpretação o princípio fundamental do viver franciscano é o Evangelho e a maneira de agir é a de Jesus Cristo.

Gostaríamos de enfocar o texto em outra direção, quer dizer: ver esse apólogo como uma análise em retrospectiva de como sua proposta inicial se desenvolveu até este momento. Seria algo como um resumo, ou quem sabe, uma análise em profundidade dos rumos que sua proposta de viver segundo o Evangelho e de seguir os passos de Jesus Cristo assumira até então. Por ser uma visão resumida o texto esconde, em suas entrelinhas, os grandes feitos e as graves decisões que adotara no início da caminhada.

As entrelinhas sugerem que não se pode ignorar que a aventura de Francisco se compõe de convicções que a modelam e de resoluções que a realizam. Entre as convicções certamente está em primeiro lugar aquela que aparece no Testamento como luz que ilumina e dá sentido a todos os passos decisivos de sua vida. É a convicção de tudo é colocado e visto sob a claridade da bondade e dom gratuito de Deus, dando-lhe a plena consciência de que esses passos foram conduzidos e quase realizados por Deus. O santo sentia-se de tal forma envolto pela graciosidade de Deus que a ele cabia apenas efetivar os passos sugeridos. Por outro lado, as convicções brotam como respostas desse envolvimento amoroso. A mais ousada e original foi a firme resolução de viver de acordo com a forma do Evangelho de Jesus Cristo. É ele que lhe traça o caminho a seguir para corresponder à convicção de sentir-se generosa e ternamente acarinhado por Deus.


Por último, é necessário incluir a certeza que o santo conquistou com a fidelidade ao projeto e com a coerência de uma vida como resposta ao amor de Deus, descoberto em Cristo e no mundo. Essa certeza diz respeito ao conhecimento e à identificação com o projeto de Jesus Cristo, pobre e crucificado. São esses dois passos que lhe conferem uma segurança tal de não necessitar de mais nada.

Sob esse pano de fundo pode-se então reler a parábola da Perfeita Alegria. A primeira e essencial conclusão que sobressai é que a medida da perfeita alegria encontra-se na coerência do seguimento a Cristo, pobre e crucificado. É ela que servirá de parâmetro para Francisco e seus seguidores. É claro que a semelhante medida não encontra respaldo nem na sociedade e nem mesmo na Igreja. Daí que no apólogo, velada mas firmemente, se renega o sucesso imediato do crescimento da Ordem (os mestres de Paris entram nela; entram também prelados, bispos e reis – além disso “somos tantos e tais”...); bem como se renegam as conquistas no campo pastoral (conversão de nações, pregação ao mundo inteiro, martírio de frades...); negam-se sobretudo as graças de Deus para fazer milagres, curar enfermos. Acentua-se, sim, que o seguimento de Cristo pobre e crucificado possui uma lógica própria e que impede o impor-se pela autoridade (Francisco não é reconhecido como fundador), ou exaltar-se agressivamente diante da negação do porteiro. A lógica do seguimento e da cruz leva a aceitar tudo isso e muito mais, porque é dessa serena aceitação que brota a paz e a perfeita alegria.

A coerência com as convicções e resoluções introduziu a construção dessa nova e audaciosa proposta cristã de viver um cristianismo original e contundente. Dentro disso se entende como a indicação do porteiro para que Francisco se dirija aos crucíferos o leva novamente para situar-se na periferia e na marginalidade como o lugar do constante retorno. É a partir desse novo “centro” que a espiritualidade franciscana assume os contornos do rosto de Francisco. Quem sabe, caberia aqui reler o tão citado texto de Celano: “Comecemos, irmãos, porque até esse momento pouco ou nada fizemos” (1Cel 103), dentro da lógica do seguimento e da cruz. Certamente esse texto levaria à conclusão que até esse momento os franciscanos pouco ou nada fizeram porque não conseguiram criar situações novas e criativas de cristianismo, conforme a proposta de Francisco. Por isso é necessário começar novamente. Hoje, entre os franciscanos fala-se tanto em novos areópagos, mas nada de novo e criativo aparece, certamente porque ainda são vistos apenas sob o prisma do sucesso e do esplendoroso e não sob a lógica do seguimento e da cruz.

Por mais independente e autônomo que esse texto da parábola possa parecer, contudo, ele se aproxima bastante da Admoestação 5, em que se fala que “ninguém deve orgulhar-se de suas virtudes ou grandezas, mas antes cada qual deve orgulhar-se na cruz do Senhor”. Dentro da visão cristológica o ser humano “é criado e formado à imagem de seu querido Filho segundo o corpo e à sua semelhança segundo o espírito”. Francisco sai do esquema tradicional da criação do homem à imagem e semelhança de Deus. Para ele, Deus se faz presença no Cristo, daí que os dons e prerrogativas são propriamente os do Evangelho: pobreza, humildade, paciência, etc. Por isso, o ser humano, criado e formado à imagem de Cristo, aponta para a imagem e semelhança com quem Cristo se identifica: os pobres, os famintos, os nus, os presos e doentes, enfim, os crucificados da vida, quer pelos sistemas sociopolítico-religioso, quer por outras estruturas que fabricam dependência, fome e misérias (cf. Mt 25,31-46). Mais uma vez a lógica da cruz aparece como o parâmetro do agir cristão.

Além disso, o texto da Perfeita Alegria respira o ara das bem-aventuranças evangélicas, principalmente aquela que diz: “Felizes sereis quando vos insultarem e perseguirem e, por minha causa, disserem todo tipo de calúnia contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque grande será a vossa recompensa nos céus” (Mt 5,11-12). É preciso lembrar-se que essa é a oitava bem-aventurança, daquele conjunto que começa: “Felizes os que têm espírito de pobre...” Alegria e pobreza só encontram lugar e somente contam dentro de um esquema em que prevalece a lógica da encarnação e da cruz. É esse também o esquema de Francisco e de sua perfeita alegria, por isso a espiritualidade que brota dele fomenta sempre mais a capacidade de viver na alegria gratuita do Espírito. Com certeza será esse esquema que manterá a força de opor-se ao forte e globalizado programa do mercado, cujos valores são os antípodas da alegria franciscana, que coloca sua maior força na convicção, sempre de novo renovada e anunciada, de que a esperança do pobre não está fadada a permanecer estéril. Com isso claramente se afirma que a verdadeira alegria é a dos pobres, porque esperançosa e utopicamente confiam que haverão de ainda ver o seu dia despontar no horizonte de Deus.

Também não é fora de propósito aproximar o texto do apólogo ao capítulo 16 da Regra não-Bulada, que fala das missões entre os infiéis. Ao insinuar que os triunfos da fé e o sucesso da pregação devem ser equacionados com a lógica da pequenez e da cruz, Francisco dá as coordenadas para a ida e o trabalho missionários. Por eles se fica conhecendo como o santo se distanciava dos ideais das cruzadas e dos triunfos pastorais da Igreja. Com isso veladamente se repropõe, em toda sua pureza originária, a experiência do Evangelho. Como pregadores e portadores da paz “se abstenham de rixas e disputas, mas sejam submissos a toda humana criatura por causa de Deus e confessem serem cristãos” (16,16). Para o santo a pregação deve entrar apenas quando os missionários perceberem que é agradável a Deus pregar. Daí em diante, e só então, podem entregar-se à tarefa da conversão. O critério último continua sendo apenas Deus.

Alargando um pouco o horizonte certamente é possível descortinar uma semelhança entre o texto da Perfeita Alegria e o grande hino de louvor e de ação de graças do capítulo 23 da Regra não-Bulada. Sendo esse último fundamentalmente um grandioso e solene hino de ação de graças e louvor, convida o mundo criado a cantar o Senhor. O texto reúne, além disso, as classes sociais do mundo medieval para proclamar a grande festa da vitória de Deus. Tenta-se, desse modo, aglutinar a imensidão dos eleitos e amados de Deus que, exultantes de júbilo, cantam a alegria de Deus pela salvação realizada pelo Filho no Espírito Santo. O Poverello convida seus irmãos a se unirem neste hino universal cósmico e a proclamarem:

Onipotente, altíssimo, santíssimo e sumo Deus... por ti mesmo te damos graças porque... criastes todas as coisas, espirituais e corporais... E porque todos nós, míseros e pecadores não somos dignos de te nomear, súplices imploramos que Nosso Senhor Jesus Cristo... juntamente com o Espírito Santo Paráclito, te dê graças de tudo, como te agrada a ti e a ele, por quem fizestes tantas coisas para nós. E a gloriosa Mãe beatíssima Maria... e todos os santos que foram, serão e são, por teu amor, humildemente suplicamos a fim de que, como te agrada, te dêem graças por esses benefícios, a ti sumo verdadeiro Deus, eterno e vivo, com teu Filho caríssimo, Senhor Jesus Cristo e o Espírito Santo Paráclito, pelos séculos dos séculos. Amém. Aleluia (RnB 23,1-6).

Essa não é apenas uma visão universal, mas compartilha antes das visões apocalípticas, onde se proclama a esperança das renovações cósmicas de novos céus e de nova terra e, portanto, se afirma a alegria como jubilosa notícia. Na verdade, a espiritualidade franciscana possui como convicção fundamental afirmar a capacidade de viver na alegria gratuita do Espírito e isso porque acredita firmemente que tanto o ser humano como sua história ainda não alcançaram o seu ponto máximo quanto a criatividade e transformação. Por isso, também continua a afirmar a atualidade dos sonhos e das utopias de um mundo mais conforme os planos do Criador, manifestados na pregação de Jesus do Reino de Deus. Com Francisco essa espiritualidade repropõe, sempre de novo, o princípio-esperança como a chama renovadora da criatividade e da gratuidade, como geradora de beleza, bondade, alegria e paz. Por causa disso, com jubilosa convicção, os franciscanos podem reafirmar que, com Francisco, é necessário reencantar-se de futuro e de esperançosa alegria para então reencantar o mundo porque ainda resta firme e forte a esperança dos pobres de que o projeto de Jesus a respeito do Reino se realizará.

Tiago Bispo da Silva
Fraternidade Sementes da Paz
Itabuna-Ba

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